Inovação Sustentável: microrganismos de pragas com potencial na produção de bioenergia
Heloize Milano
A necessidade de economias sustentáveis e ambientes limpos tem aumentado o interesse no desenvolvimento de novos processos para a produção de energia e alimentos focados na mudança da dependência de recursos não renováveis de alto custo, como o petróleo.
A procura por novas matérias-primas renováveis gerou um grande interesse na produção de etanol e outros biocombustíveis a partir de biomassa lignocelulósica, tanto na indústria como nas comunidades acadêmicas em geral, uma vez que celulose e hemicelulose são as biomassas mais abundantes em no planeta e sua hidrólise enzimática pode ser realizada em condições relativamente moderadas, não requerendo temperaturas e pressões altas ou valores de pH extremos.
Buscando aproveitar o potencial desses materiais para resolver tanto as demandas energéticas quanto ambientais de bioenergia, a pesquisa intensiva durante os últimos anos conduziu a uma maior compreensão da bioquímica da hidrólise enzimática de materiais lignocelulósicos e muito embora alguns detalhes ainda não sejam compreendidos, as características principais do processo da digestão de celulose por uma mistura de enzimas exo- e endo- glicanases e glicosidases responsáveis pela hidrólise das β- ligações dos polímeros à glicose são conhecidas. A tarefa nada fácil, no entanto, está em desenvolver um processo biotecnológico economicamente viável para a produção de açúcares fermentáveis a partir de materiais lignocelulósicos e aponta para a necessidade do estabelecimento de plataformas microbianas eficientes.
Insetos herbívoros, como cupins, baratas que se alimentam de madeira, besouros e formigas cortadeiras, entre outros, podem usar substratos lignocelulósicos como sua principal fonte de alimentação e são altamente eficientes na degradação da celulose em glicose como fonte de energia. Mas os insetos sozinhos não secretam todas as enzimas digestivas para hidrolisar as β- ligações dos polímeros. São as enzimas produzidas por simbiontes que realizam grande parte da hidrólise desses polissacarídeos, o que torna o trato gastrointestinal desses insetos fonte para a prospecção de novos microrganismos e enzimas que possam auxiliar na decomposição de várias moléculas.
Neste trabalho, 341 linhagens de microrganismos cultiváveis isolados do trato digestivo de larvas dos insetos pragas de cana-de-açúcar, besouro da raiz (Migdolus fryanus), bicudo da cana (Sphenophorus levis), broca-gigante da cana (Telchin licus licus) e de broca-da-cana (Diatraea saccharalis), foram avaliadas quanto a capacidade de degradação de substratos lignocelulósicos como única fonte de carbono em meio sólido e identificadas por técnicas moleculares. Dentre todos os isolados, os 128 identificados como leveduras e/ou leveduriformes foram analisados quanto às suas relações filogenéticas e destes, foram selecionados o 21 com melhor I.E., os quais foram testados em ensaio ensaio cinético (fermentação) para a triagem de leveduras com capacidade de bioconversão da D-xilose em xilitol e etanol.
O trato gastrointestinal das larvas mostrou ser um reservatório importante de novos microrganismos que apresentam capacidade de degradação enzimática para os compostos celulose e xilano, já que nenhum isolado foi capaz de degradar a lignina. O método de difusão radial em meio sólido indicou a atividade de degradação de forma qualitativa, através do índice de atividade enzimática (I.E.), uma ferramenta prática que facilita e acelera a seleção e a comparação da produção enzimática entre diversos isolados microbianos. Dentre os isolados testados, destacaram-se na produção de celulases as bactérias relacionadas a Bacillus amyloliquefaciens com medidas de halos de hidrólise que chegaram a 35 mm de diâmetro (Tabela 1). Entre fungos, leveduras e organismos leveduriformes os índices de atividade enzimática foram mais destacados para a degradação da hemicelulose. Os fungos filamentosos que apresentaram maior hidrólise de xilano, foram relacionados aos gêneros Pyrenophora, Aspergillus e Penicillium (Tabela 2). Já as leveduras com capacidade hidrolítica destacada foram relacionadas às espécies Meyerozyma guilliermondii, Cryptococcus laurentti, Candida pseudointermedia, Candida parapsilosis, Candida solani e Aureobasidium pullulans. Os organismos leveduriformes não apresentaram atividade enzimática expressiva nos compostos testados (Tabela 3).
A verificação das relações entre as leveduras e microrganismos leveduriformes isolados dos insetos, realizada através da árvore consenso criada por inferência bayesiana com as sequências do BLASTn de maior similaridade evidenciou, de forma geral, as sequências dos isolados que foram relacionadas a uma determinada espécie por BLAST ficaram agrupadas, corroborando com sua identidade e separação taxonômica em relação a outros grupos (Figura 1). Para as leveduras e outros microrganismos leveduriformes, ao todo nove gêneros foram relacionados aos isolados cultiváveis de M. fryanus, S. levis, T. licus licus e D. saccharalis através do sequênciamento região D1/D2 do 26S rDNA. Para os insetos estudados, 91,3 % dos isolados apresentaram sequências relacionadas aos gêneros Meryerozyma, Candida, Scheffersomyces e Pichia. Esses gêneros são recorrentes em trabalhos que associam leveduras ao trato gastrointestinal de insetos. Os organismos leveduriformes, isolados apenas em larvas de S. levis foram relacionados a Prototheca zopfii var. hydrocarbonea, microrganismo relacionado à degradação de hidrocarbonetos. As sequências de DNA extraídas dos isolados mostram que o trato intestinal das pragas estudadas abriga muitos microrganismos provalvemente ainda não descritos na literatura uma vez que a análise da similaridade realizada com as leveduras isoladas evidenciou sequências que divergiram mais de 1 % das sequências depositadas no GeneBank (NCBI) (Tabela 4).
No ensaio fermentativo realizado para a triagem de microrganismos com capacidade de conversão de xilose para a produção de xilitol e etanol, foram obtidos rendimentos de xilitol de 11,12 g L-1 em um isolado leveduriforme L39, relacionado a Prototheca zopfi var. hydrocarbonea. A capacidade desse organismo de produzir xilitol através de fermentação não havia sido descrita. O isolado L39 apresentou produção máxima de xilitol (Yp/s) de 0,51 g g -1 xilose e produtividade volumétrica (Qp) de 0,26 gxilitol L-1 h-1, parâmetros que evidenciam a velocidade de conversão de açúcar no produto de interesse. De fato, após 30 horas de fermentação, 100 % da D-xilose já havia sido consumida. Esses resultados são semelhantes aos da levedura mais utilizada até agora para a produção do composto, Pichia NRRL-Y, que foi usada como controle positivo durante o ensaio e apresentou produção máxima de 6,62 g L-1 etanol após 30 horas (Figura 2).
Os resultados de degradação e cinéticos apresentados aqui, embora preliminares, fornecem subsídios para prosseguimento da pesquisa do potencial de celulases e hemicelulases produzidas por microrganismos isolados em pragas de cana-de-açúcar e têm importância para utilização na biotecnoloigia industrial. A prospecção de microrganismos com combinações específicas de atividades enzimáticas capazes de degradação materiais lignocelulósicos, resistentes a diferentes inibidores e com rendimento elevado na biossíntese de moléculas específicas é um caminho necessário para soluções inovadoras que atendem tanto às demandas energéticas quanto ambientais, contribuindo para um futuro mais sustentável.
Tabela 1 – Hidrólise in vitro de celulose e xilano por bactérias do trato digestivo de Migdolus fryanus, Sphenophorus levis e Telchin licus licus. Nenhum isolado foi capaz de degradar a lignina
Tabela 2 – Hidrólise in vitro de celulose e xilano por fungos filamentosos do trato digestivo de Migdolus fryanus, Sphenophorus levis, Telchin licus licus e Diatraea saccharalis. Nenhum isolado foi capaz de degradar a lignina.
Tabela 3 – Hidrólise in vitro de celulose e xilano por leveduras do trato digestivo de Migdolus fryanus, Sphenophorus levis, Telchin licus licus e Diatraea saccahralis. Nenhum isolado foi capaz de degradar a lignina
Tabela 4 – Unidades taxonômicas operacionais (UTOs)* para táxons definidos em Diatraea saccharalis, Migdolus fryanus, Sphenophorus levis e Telchin licus licus. Uma vez que utilização do 26S rDNA na identificação rápida de espécies considera sequências que diferem em cerca de 1 % como espécies diferentes, foi estabelecido o corte em 1 % de divergência para estimar o número de unidades taxonômicas operacionais (UTOs) dentro de cada grupo; resultados de divergência > 1 % foram indicativos de UTOs distintas.
Figura 1 – Árvore filogenética obtida a partir de inferência bayesina para de isolados de leveduras e leveduriformes usando sequência da região D1/D2 do 26S rDNA. A verificação das relações entre as leveduras e microrganismos leveduriformes isolados dos insetos foi realizada através da árvore consenso criada por inferência bayesiana com as sequências do BLASTn de maior similaridade. De forma geral, as sequências dos isolados que foram relacionadas a uma determinada espécie por BLAST ficaram agrupadas, corroborando com sua identidade e separação taxonômica em relação a outros grupos.
Referência:
Milano, H. S. Identificação de microrganismos do trato digestivo de pragas de cana-de-açúcar com atividade enzimática para degradação de substratos lignocelulósicos e potencial para bioconversão de D-xilose em xilitol / Heloíze de Souza Milano; Orientador João Lúcio de Azevedo. – – Piracicaba, 2012.112 p.: il. Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Ciências. Área de Concentração: Energia Nuclear na Agricultura) – Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo.